A resposta do Brasil ao terror religioso

O terror há muito é visto como underground. Filmes como Porta alecrimsim (1969), E exorcista (1973)ou TO mal está morto (1981) tem sido considerado há décadas uma mídia corrupta. Coisas para ter medo e das quais manter as crianças protegidas. Se você crescer num ambiente cristão – como eu cresci – aprenderá como romper com ele.

Foi só quando estava na universidade que comecei a explorar realmente esta parte do cinema. Então, imagine minha surpresa ao assistir novamente E exorcista De repente, percebi como o filme era apologético em relação ao cristianismo, e às vezes conservador. Depois que vi, não consegui parar. A lista de filmes com mitologia, personagens e ideologia cristã era interminável e eu ficava me perguntando: por quê? O terror não deveria ser um gênero que questiona a mentalidade predominante?

onde fica isso Cidade invisível Vir. Criado por Carlos Saldanha, Cidade invisível É uma série brasileira de fantasia/terror produzida e distribuída pela Netflix.

A série segue Eric (Marco Pigossi), um policial ambiental, após a misteriosa aparição de Boto Cor de Rosa em uma praia do Rio de Janeiro, é atraído para um submundo de magia e esquemas perigosos. Mais importante ainda, o puto cor de rosa é uma criatura do folclore brasileiro que se transforma em homem para engravidar as mulheres, depois retorna à sua forma animal e desaparece.

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Tudo começa com a morte da esposa de Eric, Gabriella (Julia Conrad), uma antropóloga que estudava a comunidade local e seu folclore. Ele era o cético no relacionamento e, mesmo depois que Gabriella morreu em circunstâncias estranhas, ele se recusa a acreditar que qualquer coisa mágica tivesse efeito sobre ela. Somente depois que o corpo de Boto Cor de Rosa, que ele resgatou da praia, se transformou em cadáver humano, Eric foi forçado a admitir que algumas coisas poderiam estar além de sua compreensão.

A primeira vez que o programa introduz a ideia de diferentes tipos de mitos não é através das criaturas, mas sim através da discussão entre Eric e Gabriella. Você poderia dizer que Eric é uma representação objetiva da mentalidade cristã. Ele pode não acreditar necessariamente na existência de um deus ou de um demônio. Mas está relacionado com a ideia de um mundo preto e branco. Ele é policial e trabalha dentro de um sistema onde existem regras que você deve seguir, sem fazer perguntas. No outro extremo do espectro, temos Gabriella, uma pessoa dedicada a ouvir e compreender as diversas culturas e experiências do mundo.

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Esse tipo de mentalidade de certo versus errado, bom versus mau cria um precedente perigoso para… Lucas Erik Harold Bergson (2020) Exige saneamento narrativo. Ele explica que “(…) assumir que todas as histórias, ou arquétipos universais, são semelhantes na aderência geral a uma estrutura mitológica específica e específica, subestima as complexidades e diferenças distintivas que tornam as culturas e religiões únicas (…)”. Essencialmente, se você acredita que existem apenas duas maneiras de contar uma história – a maneira certa e a maneira errada – você corre o risco de apagar nuances.

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É justo dizer que esses personagens resumem a tese de mostrar a necessidade de passar de uma mentalidade cristã, onde você está salvo ou condenado, para uma abordagem mais sutil da existência. No entanto, pode haver uma dúvida sobre por que isso é importante. Qual a importância de um espetáculo sobre criaturas folclóricas no debate sobre a nossa compreensão do mundo? Bem, para responder a isso temos que olhar para trás no tempo.

Durante décadas, lugares como os EUA e o Reino Unido dominaram a produção e distribuição de filmes de terror. Eram indústrias de grande alcance internacional, que ajudaram a moldar muitos dos tropos e convenções que se tornaram associados ao gênero. Essa influência alcançou muitos lugares, inclusive o Brasil, país que foi e ainda é um ávido consumidor de filmes de terror. No entanto, durante a produção desses filmes fundadores, a indústria cinematográfica no Brasil ainda era muito nova e seus criadores também. Eles se esforçaram para se distanciar do que era considerado cinema estrangeiro e os filmes de terror faziam parte disso..

Embora grande parte do cinema brasileiro tenha lidado com temas místicos, os cineastas têm relutado em abraçar plenamente a linguagem e a estética do cinema de terror. Em seu livro de 2002, Dicionário de Filmes Brasileiros (Dicionário do Cinema Brasileiro, em tradução livre) Antônio Leão da Silva Neto afirmou que dos 3.415 filmes concluídos nos 150 anos de cinema do país, apenas 20 foram classificados como terror e a maioria deles eram do mesmo criador, José Mujica Marins Também é conhecido como Zé do Caixão.

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Infelizmente, esta resposta ao horror saiu pela culatra. Com o abandono do gênero pelos cineastas brasileiros, havia uma lacuna no mercado a ser preenchida e Hollywood aproveitou-se disso. Agora, em vez de um gênero cinematográfico enraizado no folclore, na mitologia e na cultura locais, como pretendiam os cineastas brasileiros da época, o país voltou-se para os dilemas puritanos vindos dos Estados Unidos.

Em seu livro, Religião e Cultura Popular: Reescrevendo o Sagrado (2008)Richard Santana explica: “Os Estados Unidos são o principal criador e exportador da cultura popular de massa do mundo e são indiscutivelmente uma das nações mais religiosas da história moderna. Como resultado, a simbiose da religião americana e da cultura popular criou um ambiente fértil mas um ambiente vitriólico para novas estruturas de crenças religiosas.”, novos textos e novas visões de mundo que são exclusivamente americanas.

É por isso que exibir como Cidade invisível É um fenômeno interessante. Embora a cena do gênero venha ganhando força no cinema brasileiro desde meados dos anos 2000, com filmes como Monstro amigavel (2016) e Clarisse (2017), ninguém pode abraçar abertamente uma mentalidade alternativa à corrente dominante do terror cristão.

Ao contrário da maioria dos filmes de terror, onde a mentalidade dualista cristã domina a moral dos personagens, Cidade invisível Ele introduz um tipo diferente de mitologia e, portanto, de ideologia em sua narrativa. Por exemplo, quando Luan (Manu Diguez), filha de Eric, acaba sendo possuída por um espírito maligno chamado Corpo Seco, e eles não chamam um exorcista. Em vez disso, eles trazem Pai de Santo – um curandeiro comumente associado às religiões afro-brasileiras – para ajudar Luna a encontrar o caminho de volta ao mundo físico. Ao contrário de filmes como Cemitério de Animais (1989), onde os cemitérios indígenas são a fonte do problema, essas crenças e culturas alternativas ao mainstream são a solução para os problemas dos nossos personagens.

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Isso também se reflete nos personagens. Aos poucos vamos aprendendo que criaturas folclóricas como o Saci-Pererê, a Cuca e a Iára vivem entre os humanos. Embora alguns destes seres sejam realmente perigosos, outros são mais subtis e desafiam a nossa compreensão do que é moral.

Isso não quer dizer que o programa nunca se aproxime do Cristianismo. Afinal, o Brasil ainda é um país muito católico. Porém, quando retrata a igreja, ele nunca é o único herói da história, mas sim uma abordagem diferente e, às vezes, falha dos temas apresentados pela mostra.

Na 2ª temporada temos a história de Mula Sem Cabeça, uma criatura mula que tem um poço de fogo em vez de cabeça. Essa criatura só existe se a mulher estiver se relacionando com um padre. Ela é então amaldiçoada a se transformar em uma mula todas as noites. A princípio pensamos que a mulher é a pecadora e a que está sendo punida. No entanto, à medida que a história avança, é-nos mostrado que ser mula não é um fardo, mas uma bênção. Ela não se arrepende desse relacionamento, pois eles se amavam de verdade. É o padre que treme diante do desafio que lhes causa problemas. O monstro tornou-se um símbolo de liberdade, não de vergonha.

Claro, esta não é uma oferta ideal. Problemas de produção e roteiro amortecem parte do impacto que a série poderia ter. Porém, ao revelar uma nova perspectiva e questionar as histórias que os filmes de terror nos contam há décadas, Cidade invisível Talvez tenha apenas desencadeado um novo movimento, um movimento para recuperar o terror das garras de Deus e de Satanás.

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