Por dentro dos incêndios que destroem a comunidade cinematográfica no Brasil

“Eles são muito rápidos em queimar e destruir, mas levará muito tempo para recuperar nosso país.”
Foto: Sebastião Moreira/EPA-EFE/Shutterstock

Era pouco depois das 18h de quinta-feira, 29 de julho, quando ocorreu um incêndio em um depósito na Vila Leopoldina, em São Paulo, afiliada à Cinemateca Brasileira, a maior coleção de filmes da América do Sul. Os bombeiros lutaram para conter as chamas por mais de quatro horas, enquanto chamas vermelhas brilhantes e fumaça espessa varriam os andares superiores de um armazém que abriga a maior parte da produção cinematográfica nacional do Brasil. Entre os filmes populares estocados na Cinemateca, financiada pelo governo federal, está o filme de Anselmo Duarte motivo do votoque ganhou o Gold Award no Festival de Cannes de 1962, e clássicos do cinema nouveau como Nelson Pereira dos Santos. vida estéril (1963), de Glauber Rocha Deus negro, demônio branco (1964), Joaquim Pedro de Andrade Makonima (1969).

Ao contrário de relatos anteriores, os originais de filmes brasileiros famosos como este não foram localizados nas instalações da Villa Leopoldina. (Eles ficam armazenados principalmente no complexo principal da Cinemateca da Vila Clementino.) No entanto, quatro toneladas de documentos e subcópias de filmes, além de notícias e filmes diversos – antigos projetores destinados à visualização e outros equipamentos necessários para reparar os existentes – foram perdidos no fogo. Uma porção não numerada da biblioteca de Rocha, Tempo Glauber, também emite fumaça.

Acredita-se que o incêndio começou depois que um subempreiteiro visitou o local para atualizar as unidades de ar condicionado do armazém. Apesar de não haver substâncias de nitrato no armazém, a velocidade com que o fogo se alastra indica a presença de substâncias de acetato; Ambos são básicos para o estoque de filmes que os diretores de fotografia usaram até a década de 1950. Tudo é muito conhecido. Em 2018, uma faísca de aparelhos de ar condicionado causou um incêndio devastador que quase destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro, com valiosos artefatos científicos e culturais perdidos nas chamas.

“É muito rápido para queimar e destruir, mas levará muito tempo para recuperar nosso país”, diz o cineasta brasileiro Karim Ainouz, radicado em Berlim, sobre o último desastre.

Danos ao armazém por cima.
Foto: Trabalhadores da Cinemateca

A Cinemateca sofreu com quatro incêndios anteriores – em 1957, 1969, 1982 e 2016. A notícia do incêndio de 29 de julho foi recebida com indignação, mas, infelizmente, não foi surpresa. O diretor Kleber Mendonça Filho escreveu no Twitter: “Depois do incêndio no Museu Nacional e dos vários pedidos de ajuda da comunidade cinematográfica, nada foi feito”. “Não parece um acidente.” Apenas no ano passado, o governo demitiu todos os 62 funcionários da Cinemateca, efetivamente fechando o estabelecimento. Desde então, os promotores federais pediram a um juiz federal para intervir em nome do set de filmagem; No entanto, o governo estabeleceu um prazo para a ação. Em 20 de julho, dias antes do incêndio, um juiz deu ao governo Mais 60 dias para provar que deu passos decisivos para a reabertura do estabelecimento.

Roberto Jervitz, coordenador do SOS Cinemateca, grupo criado pela Associação Paulista de Cineastas (APACI), descreve o ano passado como “a descida do Cinemateca ao inferno”. Mas os problemas da instituição são mais antigos. Em 2013, a demissão do diretor de cinema, Carlos Magalhães, pela ministra da Cultura Marta Suplicy, levou a uma crise institucional, com cortes drásticos no quadro de funcionários e corte no financiamento do governo. Uma década de ambiciosos projetos de restauração – incluindo a restauração completa de uma joia do modernismo brasileiro, limite (1931), em cooperação com a World Cinema Foundation – descontinuado. Em 2016, de acordo com o relatório anual da fundação, outro orçamento reduzido limitou os gastos institucionais a “necessidades essenciais de custódia, mas não investimentos em infraestrutura, ou a presença geral de [archive’s] necessidades técnicas. Nesse ano, o financiamento da Cinemateca permaneceu público, mas a sua gestão passou para a fundação privada, Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP). Mais recentemente, em 2019, O presidente Jair Bolsonaro dissolveu o Ministério da Cultura e congelou os recursos da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). No ano seguinte, depois que o presidente não nomeou sua patrocinadora, a atriz Regina Duarte, como nova diretora da Cinemateca, o governo cancelou o contrato com a ACERP, cortando totalmente o financiamento da Cinemateca. Em agosto de 2020, o novo ministro da Cultura, ator Mario Frias, acompanhado pela Polícia Federal, obrigou todos os demais funcionários da Cinemateca, cujos salários não haviam sido pagos.

Os trabalhadores demitidos usaram as redes sociais usando a hashtag #SOSCinematecaBrasileira. Eles se organizaram sob o nome de Trabalhadores da Cinemateca, fizeram protestos e emitiram um comunicado exigindo que o governo os devolvesse aos seus empregos. O governo concordou em lançar um esforço para recrutar uma nova administração dentro de dois meses após as demissões. Só fiz isso no sábado, 30 de julho, um dia depois do incêndio. Entretanto, a SAC, que entretanto gere a Cinemateca, propôs um projeto de trabalho de emergência que prevê o regresso ao trabalho de cerca de 40 trabalhadores. O governo aprovou o projeto, mas até agora apenas os trabalhos de escolta foram retomados.

O fogo pegou na noite de quinta-feira.
Foto: Trabalhadores da Cinemateca

A manutenção básica não é suficiente. Os trabalhadores alertaram que as cópias de nitrato e acetato em poder da Cinemateca exigem monitoramento e manutenção constantes, especialmente nas temperaturas extremas do Brasil. E não são apenas os incêndios que atormentam o grupo. Thiago Costa Gomez, ex-equipe da Cinemateca e integrante da Trabalhadores, realizou uma avaliação de emergência no site Villa Leopoldina no ano passado, depois que uma forte inundação no armazém danificou os materiais. Foi quando os materiais foram movidos de porões para terrenos mais altos, onde o incêndio de 2021 começou.

Para o diretor paulista Marco Dutra, o último incêndio – e a notícia de que entre os itens desaparecidos no incêndio estão alguns dos filmes de 16 e 35 mm para estudantes de cinema da Associação de Chefs Egípcios [the Communication and Audiovisual School at the University of São Paulo] – É um déjà vu sombrio. Em 2001, quando Dutra estudava na escola de cinema, um incêndio destruiu o prédio e a maior parte do departamento de cinema. “Lembro-me das lágrimas de nossos professores por causa de suas matérias”, diz Dutra. O incêndio de 2021 chamou mais uma vez a atenção do público para as políticas inadequadas do governo (ou falta delas) quando se trata de conservação. “Esse governo está agindo inercialmente e a preservação nunca faz parte de suas políticas audiovisuais. É sempre uma reflexão tardia”, diz Deborah Potros, especialista em conservação e presidente da Associação Brasileira de Preservação do Audiovisual (ABPA).

Infelizmente, o descaso do Brasil com a conservação ambiental não é exceção na América Latina. Em 16 de julho, o historiador de cinema argentino Fernando Martin Peña denunciou as novas leis que regem o cinema em estudo em seu país, dirigindo uma condenação no Twitter não ao governo, mas à indústria cinematográfica: “A pouca importância (e projeções orçamentárias incertas) dada ao Como sempre, a comunidade cinematográfica quer dinheiro para produzir. Não se importa com nada para economizar.”

Rolos de filme rasgados e molhados no interior do armazém da Cinemateca, após incêndio e posterior extinção.
Foto: Corpo de Bombeiros

A proliferação de imagens na Internet está aumentando a confusão sobre a importância de preservar o filme físico, segundo Potruss. “O o público Ele armazena as imagens em plataformas pagas de internet, o que de fato não garante a manutenção dos arquivos pessoais”, diz Potros. Enquanto isso, o banco de informações culturais da Cinemateca está parado há um ano. As buscas nos arquivos online da instituição normalmente levam a páginas que não funcionam .

“O descaso do governo federal prejudica brutalmente a produção e a pesquisa existentes”, diz Amir Labaki, fundador e diretor do Festival Internacional de Documentários “Está tudo bem” (Todo Verdade), em parte na Cinematheca. O comentário de Labaki reflete a frustração da comunidade cinematográfica mais ampla por não ver um fim para o sofrimento da instituição.

O próximo grande desafio é contestar a licitação aberta do governo para administrar a nova Cinemateca. Os protestos no estabelecimento estão acontecendo neste fim de semana, o primeiro aniversário do fechamento da Cinemateca. A licitação deve ser cancelada. Sua proposta de orçamento [10 million reais a year, or just under $2 million] Muito baixo. Não é garantia de sobrevivência da Cinemateca, diz Gervitz. Quanto às tentativas do governo de obrigar os cineastas a pagar para que seus filmes sejam arquivados, Gervitz repete: “A cinematografia não deveria ser um provedor de serviços. É um repositório de nossa memória nacional, é nosso cuidado histórico”.

“Perdemos nossa voz e nossa independência”, diz Karim Ainouz, que vê o incêndio como um sintoma do mesmo atoleiro político que permite a queima da floresta amazônica e a morte de mais de meio milhão de brasileiros durante a pandemia. Antes das eleições presidenciais de 2022, ele sente a urgência do assunto. “É hora de transformar nosso descontentamento em ação política concreta e luta”, diz ele. “Precisamos recuperar o oxigênio.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *