O Lula brasileiro está certo na política mundial e errado nas opiniões da Ucrânia

Quando o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o cargo em janeiro, muitos formuladores de políticas no Ocidente deram um suspiro de alívio. Quatro anos de políticas reacionárias de Jair Bolsonaro minaram o envolvimento do Ocidente com o Brasil e alarmaram as democracias liberais ocidentais sobre o ressurgimento da política de extrema direita na América do Sul.

O forte apoio que Lula recebeu das capitais ocidentais, e principalmente de Washington, quando seguidores de Bolsonaro atacaram prédios do governo na capital brasileira logo após a posse, pretendia solidificar um “reset” das relações.

Mas quando os Estados Unidos e seus aliados europeus pressionaram o presidente brasileiro a se posicionar sobre a guerra que assolava a Ucrânia, a resposta que receberam não foi a que esperavam.

Além de votar a favor de uma resolução da ONU condenando a agressão russa, o Brasil sob o novo governo não assumiu um lado claro no conflito.

Lula recusou-se a entrar no campo anti-russo, ingressando no regime de sanções ou armando a Ucrânia, e continuou a seguir a linha de neutralidade traçada por seu antecessor de direita.

Seria ingênuo, é claro, esperar que o Brasil ficasse totalmente do lado do Ocidente na guerra da Ucrânia. De uma perspectiva global do sul, a posição de Lula faz sentido. Ele não apenas defende interesses nacionais vitais relacionados ao agronegócio brasileiro, mas também é ideologicamente consistente com a posição neutra que o Brasil ocupa na política mundial.

No entanto, as preocupações domésticas e a continuidade diplomática não devem impedir o governo brasileiro de oferecer sua solidariedade à Ucrânia, vítima de agressão por parte de uma ex-potência colonial.

considerações locais

Durante sua campanha eleitoral em 2022, Lula aproveitou seu sucesso anterior e alimentou a esperança entre os pobres do Brasil de que seu novo governo repetiria as políticas sociais e econômicas anteriores.

Durante seus dois primeiros mandatos (2003-2010), o boom global dos preços das commodities permitiu que seu governo aumentasse os gastos públicos. A receita extra foi redirecionada para políticas massivas de transferência de renda, como o Bolsa Família, o programa social que se tornou sua marca registrada e que tirou cerca de 36 milhões de pessoas da pobreza extrema.

Mas a situação no Brasil hoje é muito diferente, dada a polarização política interna e a difícil situação econômica caracterizada por inflação alta, crescimento lento e um setor privado lento.

É por isso que, ao montar sua política externa, Lula tem que levar em consideração os interesses econômicos das indústrias, que contribuem com grande parte da receita do estado. Ao examinar as relações com a Rússia, um dos principais setores a serem considerados é o agronegócio, que responde por cerca de 25% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil e 48% das exportações totais do país.

A produtividade da agricultura brasileira depende do uso extensivo de fertilizantes, principalmente NPK (compostos de nitrogênio, fósforo e potássio). O Brasil é o maior importador mundial de NPK, e a Rússia é o maior vendedor, atendendo a 22% da demanda brasileira.

Aderir ao regime de sanções ocidentais contra Moscou certamente interromperia o fornecimento constante de fertilizantes russos e afetaria as exportações agrícolas. Isso, por sua vez, não só irritaria os grandes agronegócios que têm um grande lobby no Parlamento brasileiro, mas também afetaria o fluxo de receitas do governo com as exportações agrícolas.

Os cálculos de Lula são simples: para financiar as políticas sociais e reconquistar o eleitorado da extrema-direita, ele precisa de estabilidade econômica e fontes de renda. As relações comerciais com a Rússia desempenham um papel importante nessa equação.

Não-alinhamento no século XXI

O Brasil sob Lula não está sozinho em perseguir seus próprios interesses ao considerar sua posição sobre a guerra na Ucrânia. Os governos do Sul Global não querem se envolver porque acreditam que têm muito a perder se o fizerem.

No ano passado, a guerra e as sanções subsequentes afetaram as nações pobres, à medida que os preços dos grãos e dos combustíveis dispararam. Os países em desenvolvimento não podem se dar ao luxo de inflamar ainda mais a crise tomando partido em uma guerra que é de pouco interesse para eles e pode ameaçar seus suprimentos de grãos.

Em todo o Sul Global, há um sentimento geral de que a Europa e os Estados Unidos estão ignorando a estabilidade econômica global e o bem-estar das nações pobres em sua pressa de armar e ajudar a Ucrânia.

O apoio ocidental a Keef também é visto por muitos como uma continuação do longo histórico de intervenções ocidentais em todo o mundo. Nesse sentido, o governo brasileiro e outros do Sul Global não veem o Ocidente como tendo autoridade moral para exigir apoio para seus esforços militares na Ucrânia. O cenário clássico para esse tipo de pensamento é a invasão do Iraque liderada pelos EUA em 2003, lançada por Washington, apesar da falta de um mandato do Conselho de Segurança da ONU.

No contexto de tensões crescentes entre Ocidente, China e Rússia, Lula tentou criar um terreno geopolítico semelhante ao Movimento dos Não-Alinhados durante a Guerra Fria. Em suas visitas ao exterior, ele destacou a neutralidade do Brasil, pediu a solidariedade Sul-Sul e até mesmo a desdolarização do comércio internacional.

Ele defendeu a paz, propondo uma nova iniciativa – um “clube da paz” em um esforço para levar adiante as negociações entre a Ucrânia e a Rússia.

Moscou concordou com a iniciativa, mas Kiev a rejeitou categoricamente, enquanto os Estados Unidos acusaram o líder brasileiro de “fazer eco à propaganda russa e chinesa”.

Os comentários subseqüentes de Lula de que o presidente russo Vladimir Putin e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky eram os culpados pela guerra e que a Ucrânia teria que desistir de sua reivindicação sobre a Crimeia não ajudaram. As tentativas de controle de danos por parte da presidência, condenando inequivocamente a invasão russa da Ucrânia e recusando o convite russo para participar do Fórum Econômico de São Petersburgo, não tiveram sucesso.

A tentativa de Lula de invocar o novo Movimento Não-Alinhado falhou e, no processo, ele parece ter perdido parte do prestígio internacional que havia construído durante seus reinados anteriores.

situação do terceiro mundo

Há uma contradição no apelo de Lula por um Terceiro Mundo do século 21 versus a guerra na Ucrânia. Embora ele esteja certo em criticar a intervenção ocidental, suas críticas são insuficientes quando se considera a história ucraniana e a situação atual.

O país, um dos mais pobres da Europa, tem uma história colonial brutal semelhante à do Brasil e do resto da América Latina. Não é, de forma alguma, uma nação do hemisfério norte, que se enriqueceu com a dominação de outros povos.

Ao mesmo tempo, a Ucrânia não pode ser reduzida a uma vítima da ocidentalização forçada ou a um fantoche da OTAN. Fazê-lo ignoraria a luta ucraniana pela libertação e independência nacional e legitimaria a agressão russa e as pretensões coloniais.

Nesse sentido, se o Brasil oferecesse seu apoio à Ucrânia, seria uma expressão de solidariedade Sul-Sul – uma solidariedade vista pela propaganda do Ocidente, mas também das potências orientais.

Chegando a Kiev, Lula pode não apenas rejeitar a narrativa ocidental simplista de “democracia liberal ocidental versus despotismo oriental”, mas também a retórica igualmente hipócrita de “ocidente versus o resto” que fecha os olhos para a agressão das potências regionais , brutalidade autoritária e opressão das minorias no Sul Global .

O governo brasileiro também não pode ignorar as evidências crescentes de horríveis crimes de guerra cometidos pelas forças russas na Ucrânia, o que refuta qualquer alegação de uniformidade neste conflito. Lula não pode se apresentar como um mensageiro da paz, liderando um país historicamente comprometido com os direitos humanos e a justiça social, ignorando as graves violações dos direitos humanos internacionais e do direito humanitário.

A agressão da Rússia na Ucrânia e a narrativa apologética do Kremlin desafiam a legitimidade da ordem jurídica internacional que o Estado brasileiro, membro fundador das Nações Unidas, defende desde 1945. A visão multiimperial de Putin de um mundo em que as potências nucleares o dividem em esferas de influência contradiz diretamente o pluralismo e a igualdade que o Brasil tem defendido nos últimos 75 anos.

Lula parece preso aos velhos dilemas da Guerra Fria de um mundo que não é mais bipolar. A alternativa ao unilateralismo do presidente dos EUA, George W. Bush, que marcou a invasão do Iraque em 2003, não pode ser o pluralismo imperial da invasão da Ucrânia por Putin.

Se o presidente brasileiro realmente deseja promover o multilateralismo e defender o direito internacional, então ele deve expressar inequivocamente sua solidariedade com a Ucrânia e condenar a agressão russa. A partir dessa posição, ele poderia liderar os esforços de mediação multinacional, construindo uma coalizão de parceiros dispostos junto com a China e a Índia.

As opiniões expressas neste artigo são do autor e não refletem necessariamente a posição editorial da Al Jazeera

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